Os poemas
Os poemas são pássaros que chegamnão se sabe de onde e pousamno livro que lês.Quando fechas o livro, eles alçam vôocomo de um alçapão.Eles não têm pousonem portoalimentam-se um instante em cada par de mãose partem.E olhas, então, essas tuas mãos vazias,no maravilhoso espanto de saberesque o alimento deles já estava em ti...
Quintana
Dá-me a tua mão
Dá-me a tua mão: Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.
Clarice
4o. Motivo da rosa
Não te aflijas com a pétala que voa:também é ser, deixar de ser assim.Rosas verá, só de cinzas franzida,mortas, intactas pelo teu jardim.Eu deixo aroma até nos meus espinhosao longe, o vento vai falando de mim.E por perder-me é que vão me lembrando,por desfolhar-me é que não tenho fim.
Cecília
Não passouPassou?
Minúsculas eternidadesdeglutidas por mínimos relógiosressoam na mente cavernosa.Não, ninguém morreu, ninguém foi infeliz.A mão- a tua mão, nossas mãos-rugosas, têm o antigo calorde quando éramos vivos. Éramos?Hoje somos mais vivos do que nunca.Mentira, estarmos sós.Nada, que eu sinta, passa realmente.É tudo ilusão de ter passado.
Drummond
Serenata
Permita que eu feche os meus olhos,pois é muito longe e tão tarde!Pensei que era apenas demora,e cantando pus-me a esperar-te.Permite que agora emudeça:que me conforme em ser sozinha.Há uma doce luz no silencio,e a dor é de origem divina.Permite que eu volte o meu rostopara um céu maior que este mundo,e aprenda a ser dócil no sonhocomo as estrelas no seu rumo.
Cecília
A um ausente
Tenho razão de sentir saudade,tenho razão de te acusar.Houve um pacto implícito que rompestee sem te despedires foste embora.Detonaste o pacto.Detonaste a vida geral, a comum aquiescênciade viver e explorar os rumos de obscuridadesem prazo sem consulta sem provocaçãoaté o limite das folhas caídas na hora de cair.Antecipaste a hora.Teu ponteiro enlouqueceu,
enlouquecendo nossas horas.Que poderias ter feito de mais grave do que o ato sem continuação, o ato em si,o ato que não ousamos nem sabemos ousarporque depois dele não há nada?Tenho razão para sentir saudade de ti,de nossa convivência em falas camaradas,simples apertar de mãos, nem isso, vozmodulando sílabas conhecidas e banaisque eram sempre certeza e segurança.Sim, tenho saudades.Sim, acuso-te porque fizesteo não previsto nas leis da amizade e da naturezanem nos deixaste sequer o direito de indagarporque o fizeste, porque te foste.
Drummond
Motivo
Eu canto porque o instante existee a minha vida está completa.Não sou alegre nem sou triste:sou poeta.Irmão das coisas fugidias, não sinto gozo nem tormento.Atravesso noites e diasno vento.Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço, — não sei, não sei. Não sei se ficoou passo.Sei que canto. E a canção é tudo.Tem sangue eterno a asa ritmada.E um dia sei que estarei mudo:— mais nada.
Cecília
A verdadeira arte de viajar
A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa,Como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo.\Não importa que os compromissos, as obrigações, estejam ali...Chegamos de muito longe, de alma aberta e o coração cantando!
Quintana
Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas;eu não tinha este coraçãoque nem se mostra.Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil:— Em que espelho ficou perdidaa minha face?
Discurso
E aqui estou, cantando.Um poeta é sempre irmão do vento e da água:deixa seu ritmo por onde passa.Venho de longe e vou para longe:mas procurei pelo chão os sinais do meu caminhoe não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentesandaram.Também procurei no céu a indicação de uma trajetória, mas houve sempre muitas nuvens.E suicidaram-se os operários de Babel.Pois aqui estou, cantando.Se eu nem sei onde estou, como posso esperar que algum ouvido me escute?Ah! Se eu nem sei quem sou, como posso esperar que venha alguém gostar de mim?
Cecília
O preço da conciliação
Há 4 semanas