
ESTÃO JUNTOS? MAS ELES VIVIAM BRIGANDO
Arte de Delacroix
O amor é a reviravolta dentro da diferença. É fácil descobrir quem pode se apaixonar. Basta que os dois, que mal se conhecem, estejam brigando. Ambos largam a conversa do grande grupo para os braços discordarem com maior liberdade. Entram em transe no meio da mesa. Já discutem com ardor, teimam por detalhes, acalentam seminários paralelos e sem fim. A princípio, identifica-se uma dissid ncia atroz, uma dessemelhança furiosa. Pelo primeiro encontro, a projeç o é que nunca ser o amigos. Demonstram um ódio mútuo pelas opini es emitidas. Falta apenas sair no tapa. Essas figuras antagônicas t m grandes chances de se casarem a partir daquele momento. Atraídas por tudo o que n o entendem um no outro. S o como o mar: violentos na margem, com repuxo e pancadas ininterruptas das ondas, e tranqüilos após ultrapassar a linha da arrebentaç o. Desencadeamos uma relaç o n o pela simpatia superficial, pela vizinhança óbvia das idéias, pelas afinidades visíveis, mas pelo desconhecido. É o desconhecido que nos chama. Algo que ele disse e n o se concorda, mas é intrigante - estimula a desejar entender. Algo que ela disse e é poético, até incompreensível - reivindica um quarto escuro e uma música para pensar melhor. O desconhecido irrita no começo, pede espaço, tempo e intimidade. Provoca o espanto e o cansaço intelectual. Temos que caminhar mais rápido para alcançar. Passar pela nossa moralidade de madrugada na ponta dos pés, sem acordá-la. N o nos apaixonamos por aquilo que sabíamos, mas por aquilo que n o sabemos e descobrimos que precisamos. Descobrimos subitamente que n o podemos mais viver sem. As declaraç es "ele é insuportável"/"ela é insuportável" devem ser traduzidas imediatamente em "ele me envolve"/"ela me envolve". O par se defenderá nos primeiros contatos, numa queda-de-braço silenciosa e inflexível. Há um exagero proposital na armadura, no combate. Nenhum dos dois aceitará uma trégua. Nenhum dos dois aceitará recuar e se desculpar. Nenhum dos dois admitirá a derrota dos argumentos. Mostram que s o mais decididos, mais temperamentais, mais convictos. E n o largam sua posiç o intolerante porque est o se exibindo, est o alertando que s o bons. Quase a comentar: "v como sou forte, n o é isso que está procurando?" Tentam convencer, e, de modo involuntário, seduzem. A oposiç o é enganosa: a provocaç o é uma cilada: a contrariedade é um pretexto para n o encerrar a conversa. N o se ama sem incomodar e ser incomodado antes. Os cachorros de casa v o latir desesperadamente pelo avanço do estranho pelos nossos corredores. Por que ele me perturba tanto? Por que ela me perturba tanto? Ela n o entende sozinha, e ele n o entende sozinho, e voltam a se encontrar para procurar a resposta. O amor cria sua depend ncia pela raiva. Porém, n o é raiva, parece raiva; é mistério.
Arte de Delacroix
O amor é a reviravolta dentro da diferença. É fácil descobrir quem pode se apaixonar. Basta que os dois, que mal se conhecem, estejam brigando. Ambos largam a conversa do grande grupo para os braços discordarem com maior liberdade. Entram em transe no meio da mesa. Já discutem com ardor, teimam por detalhes, acalentam seminários paralelos e sem fim. A princípio, identifica-se uma dissid ncia atroz, uma dessemelhança furiosa. Pelo primeiro encontro, a projeç o é que nunca ser o amigos. Demonstram um ódio mútuo pelas opini es emitidas. Falta apenas sair no tapa. Essas figuras antagônicas t m grandes chances de se casarem a partir daquele momento. Atraídas por tudo o que n o entendem um no outro. S o como o mar: violentos na margem, com repuxo e pancadas ininterruptas das ondas, e tranqüilos após ultrapassar a linha da arrebentaç o. Desencadeamos uma relaç o n o pela simpatia superficial, pela vizinhança óbvia das idéias, pelas afinidades visíveis, mas pelo desconhecido. É o desconhecido que nos chama. Algo que ele disse e n o se concorda, mas é intrigante - estimula a desejar entender. Algo que ela disse e é poético, até incompreensível - reivindica um quarto escuro e uma música para pensar melhor. O desconhecido irrita no começo, pede espaço, tempo e intimidade. Provoca o espanto e o cansaço intelectual. Temos que caminhar mais rápido para alcançar. Passar pela nossa moralidade de madrugada na ponta dos pés, sem acordá-la. N o nos apaixonamos por aquilo que sabíamos, mas por aquilo que n o sabemos e descobrimos que precisamos. Descobrimos subitamente que n o podemos mais viver sem. As declaraç es "ele é insuportável"/"ela é insuportável" devem ser traduzidas imediatamente em "ele me envolve"/"ela me envolve". O par se defenderá nos primeiros contatos, numa queda-de-braço silenciosa e inflexível. Há um exagero proposital na armadura, no combate. Nenhum dos dois aceitará uma trégua. Nenhum dos dois aceitará recuar e se desculpar. Nenhum dos dois admitirá a derrota dos argumentos. Mostram que s o mais decididos, mais temperamentais, mais convictos. E n o largam sua posiç o intolerante porque est o se exibindo, est o alertando que s o bons. Quase a comentar: "v como sou forte, n o é isso que está procurando?" Tentam convencer, e, de modo involuntário, seduzem. A oposiç o é enganosa: a provocaç o é uma cilada: a contrariedade é um pretexto para n o encerrar a conversa. N o se ama sem incomodar e ser incomodado antes. Os cachorros de casa v o latir desesperadamente pelo avanço do estranho pelos nossos corredores. Por que ele me perturba tanto? Por que ela me perturba tanto? Ela n o entende sozinha, e ele n o entende sozinho, e voltam a se encontrar para procurar a resposta. O amor cria sua depend ncia pela raiva. Porém, n o é raiva, parece raiva; é mistério.
Fabrício Carpinejar